Bestiário. Julio Cortázar, 1951
It is
the imagination
which
cannot be fathomed.
It is
through this hole
we escape.
William Carlos Williams
1.
Antes de tudo, impõe-se o óbvio: escrever é mais do que
contar, embora não seja o contrário de contar, ou de contar tudo – não é sempre
esconder, não é sempre desdizer (talvez apenas o que ainda não foi dito).
Escrever é recusar Deus, como disse Barthes em O rumor da língua; é recusar o que está dito, ser o autor dos
próprios sonhos, ser autor do próprio escape.
2.
A vertigem é a definição do ato de escrever para Julio Cortázar,
lembra Castelo. Diz que alucinar é escapar da “brutalidade do real”,
ultrapassar os fatos que nos comprimem em estreitos corredores.
Soltar o fio do labirinto, se preciso; caminhar em direção
ao sol, os olhos escancarados.
3.
Escrever é sonhar, é perfurar esse limbo; mas é ao mesmo
tempo entregar-se a outro limbo, ao código do sonho. O sonho dessacraliza a
suficiência do real, nesse sentido é contra-hegemônico; se escrever é
perder-se, é sonhar-se, é também frustrar o real, frustrar o código narrativo –
impossível destruí-lo, é preciso jogar com ele, como diz Barthes.
O jogo pressupõe risco, acidente, acaso. É conhecido o
conjunto de entrevistas de Francis Bacon ao crítico de arte David Sylvester, A brutalidade do fato. Se nos primeiros
quadros a obsessão com o controle do ato criativo se impunha, ao longo da
carreira Bacon se rende à sorte, num movimento que imita a própria vida fora do
estúdio, às voltas com jogos de azar.
Ele diz: “A vontade foi subjugada pelo instinto.” Nos
quadros de Bacon, as figuras que surgem fogem à conformidade, aliam-se à
deformidade para revelar uma “realidade” mais essencial: “Quase sempre existe
no acaso um tipo de inevitabilidade que as pinceladas voluntárias da tinta não
lhe dão.”
Em maior ou menor grau – poderia-se falar, talvez, de graus
de acidente – é o que se observa nos contos de Bestiário. Cortázar ignora o conselho de Poe: não sabe o final dos
contos quando começa a escrevê-los. Confia no acidente, em sua instabilidade
inerente, como forma adequada para traduzir o código do sonho, para exprimir o
que não pode ser visto, mas alucinado.
4.
Nesta visão intangível (exceto para o sonho) vive o tigre do
conto que dá título ao livro. Ele transita pela mansão dos Funes como mais um habitante
da casa, alguém com quem se acostuma à presença mas que se precisa desviar, ignorar
seu andar silencioso na sala de cristais enquanto a família janta noutro
cômodo.
Aos poucos o leitor entende que o animal ameaça muito menos
a familia do que o conjunto de violências que alicerça suas relações. Basta que
o caseiro avise em que parte da casa está o estorvo para que ele não interfira
na rotina: “na pior das hipóteses, só não deviam entrar em uma dessas peças;
nunca mais de uma, assim que não tinha muita importância.”
A presença do tigre suspende a crença no mundo como o
vivenciamos: humanos e animais selvagens podem conviver, em cômodos vizinhos, assim
como uma família se reúne à mesa ainda que a dinâmica que a sustenta seja
baseada numa teia de agressões mudas.
Cortázar recusa a exposição realista de um drama privado em
favor do “inquietante” (Unheimlich),
termo a que Freud dedicou um ensaio. Ele cita Schelling, para quem o
inquietante é “tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”.
Freud confere densidade ao termo, afirmando que a angústia que surge do
inquietante se deve à repressão do que, outrora, fora familiar, como o ventre
materno. A ideia é que o uso da linguagem transforme o heimlich em seu oposto, o unheimlich,
isto é, algo familiar que, por meio da repressão, alheou-se.
5.
“Em nenhum outro âmbito”, diz Freud, “nossos pensamentos e
sentimentos mudaram tão pouco desde os primórdios”; refere-se à morte.
No conto “Ônibus”, Clara percebe os olhos do cobrador a esquadrinhá-la,
e logo também os do motorista; considera que são os olhares masculinos, nada
sutis, que violentam uma mulher. Mas não demora a notar, também, que a fitam
senhoras e outros passageiros, e em seguida todos já a estão encarando, de
ramos nas mãos. Rosas vermelhas, copos-de-leite, cravos negros contrastam com
as mãos vazias de Clara. Pensa que é comum que levem flores a Chacarita, bairro
onde há um cemitério. Mas esses que vão ao cemitério não pretendem voltar.
Presente como a vida, a morte no entanto nos constrange; em
pensamento, imagem ou conceito, ela nos cerca, narrada em fotos e textos de
jornal, mas etérea, sempre um simulacro – morte sem corporeidade. No conto, sua
fisicalidade se impõe, inexorável; não se sabe quando levantará de seu assento,
ou quando convocará a todos que se levantem de uma vez, quando se movimentará
para saltar junto a nós, no ponto de sua escolha; ou, ainda, talvez Cortázar
nos queira dizer que aquele ônibus, na verdade, nunca vai parar, que já estamos
sonhando de dentro da morte.
6.
Sonhar tem como consequência para o autor (aquele que sonha)
interpretar, preencher lacunas.
De outro lado, a escritura necessita da incerteza, mas para
dobrá-la – como escreve Jentsch (citado por Freud) a respeito de E.T.A.
Hoffmann – apropriar-se dela como método num ambiente de suspensões. Escrever é
ultrapassar a Razão ao se admitir sua insuficiência. Ou, melhor, jogar com ela.
Diz Freud sobre o escritor: “Ele como que denuncia a superstição que ainda
abrigamos e acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade
comum e depois ultrapassá-la.”
Ao abdicar do controle da narrativa, Cortázar perturba um
sistema estável: o ato de escrever fundado em causalidades e sucessões lógicas,
em encenações e aparências, em verossimilhanças externas. Deixa que o
inquietante ocupe, um a um, os cômodos da casa, deixa que estrangule as paredes
e se reproduza abaixo do piso, até que tome o organismo e expulse quem o
habitava.
Barthes: “a escritura propõe sentido sem parar, mas é sempre
para evaporá-lo.” Como no quadro de Friedrich, Caminhante sobre o mar de névoa, o leitor de Cortázar abandona as
respostas quando chega ao cume da montanha e tem a vista bloqueada. O
fantástico ocupa este intervalo onde falha a individuação.
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