A ocupação. Julián Fuks, 2019
Há um extenso inventário de
personagens da literatura que simplesmente se recusam; que resistem à qualquer
sujeição, que erguem o corpo quando lhes dizem para curvá-lo, ou que se
entregam à afasia quando lhes ordenam que se levantem e trabalhem, como o
escrivão de Melville. Às vezes a renúncia é tal que se entregam à cama,
subitamente, e põem-se a organizar as vigas de madeira do teto, a observar os
bilhetes que, à procura, invadem o quarto por baixo da porta, como no homem que
dorme de Perec; outras, deparam-se com um absurdo invencível e já não encontram
interlocução, como em Camus, como em Beckett.
Todos eles estão na literatura e
principalmente fora dela – os que antes de recusarem foram recusados, e que por
isso se puseram em movimento. No Brasil, agora mais do que nunca, precisam
negociar também sua inércia, porque ser o que são constitui ameaça. Nunca estiveram
tão à margem, e talvez por isso estejam no centro de “A ocupação”, novo romance
de Julián Fuks, referência contemporânea em autoficção no Brasil. Se no livro
anterior, “A resistência”, o protagonista dessa recusa era o irmão de
Sebastián, agora o foco sai do ninho em direção ao outro, um outro “mais outro”
possível.
A história se divide em três
eixos: a morte iminente do pai
de Sebastián, que o faz visitar as memórias de família; a ocupação do antigo
Hotel Cambridge, em São Paulo; e o escrutínio do relacionamento com a esposa
diante da expectativa pela chegada de um filho.
Precariedade
“Todo homem é a ruína de um
homem”, é o primeiro anúncio do narrador, um primeiro ensaio das contraposições
fundadoras que se desenvolvem ao longo do romance. Os escombros do pai convivem
com a esperança de um nascimento, uma reconstrução tardia no corpo fadado a
irromper.
Da mesma forma, a precariedade,
agora literal e imediata, urge nos moradores da ocupação, abandonados à esfera
do provisório – na melhor das hipóteses, pois o Brasil que os circunda tem tons
apocalípticos, de fim de ciclo, de fraturas definitivas. Surgem assim as
resistências que habitam o Cambridge:
“Você me pergunta por que eu
vim parar aqui, eu não sei dizer, só sei dizer por que saí de lá. Chegando na
rodoviária, eu não tinha aonde ir, entrei no metrô e segui a massa porque não
tinha a quem seguir. Minha vida era um vazio, feita só do que já não existia.
Foi a Carmen quem me tirou da rua naquelas primeiras noites duras de São Paulo,
foi a luta quem tirou de dentro de mim aquela mulher morta. O caso é que eu
cansei de ser ocupada, por homens, por rato, por larva. Agora é a minha vez de
ocupar, você não acha? Rosa, meu nome é Rosa.”
Alguns vêm dos vizinhos
latino-americanos, como o peruano Demetrio, que há anos já sabia falaciosa a
máxima do país cordial, que o trancou logo após recebê-lo na fronteira, “não
muito diferente de como o Brasil o recebe hoje, a cada manhã e a cada noite.”
Havia aprendido que “escapar de um lado para outro era agora uma função vital”,
como é para muitos que vivem na ocupação, alvos primários de racismo, xenofobia
e outros horrores que se converteram em bandeira fiel do nosso tempo.
Riscos
Soma-se ao universo psicológico
do livro, então, esse marcador de época que é o Brasil recente. Ao longo do
texto, é um elemento que aparece aqui e ali, talvez para efeitos de
verossimilhança externa, às vezes apenas referido como dizendo ao leitor que
preste atenção nele.
Mas não transparece de fato, uma
singularidade nessa experiência de Brasil (como há no eixo do casamento, por
exemplo), isto é, ela não se destaca mais do que artificialmente como uma
lembrança longínqua do narrador “sobre os rumos de um país que não reconhecia
mais”.
É verdade que ele tenta se deixar
absorver por aquele microcosmo, enquanto se afasta da esposa, relacionamento
que aos poucos revela suas rachaduras. No entanto, é Sebastián quem absorve os
personagens na teia de seu narrar: não são as suas vozes que escutamos,
escutamos sobre as suas vozes, sobre as opressões sofridas,
traduzidas no discurso impositivo desse narrador autocentrado. Não é a altiva
Preta, não é o sírio Najati que falam, são seus corpos que são alugados como
veículos para as teses de Sebastián, atento a ouvir a si mesmo:
“Na ocupação eles insistem que
formamos uma família, uma família de refugiados em terra própria ou
estrangeira, e isso de início me pareceu estranho, disse Najati. Depois pensei
que não poderia haver definição mais precisa. Sim, porque o mundo é feito de
infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. Como a minha, toda família
tem, se recuarmos o bastante no tempo, uma infinidade de deslocamentos em sua
gênese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal
como a conhecemos graças a esses deslocamentos. No fundo – eu agora o ouvia com
concentração plena –, no fundo, se recuarmos o bastante no tempo, vamos
concluir o que há de mais óbvio: que cada um de nós fez o seu caminho, mas que
somos todos descendentes de um mesmo ancestral absoluto e longínquo(...)”
Embora tente declarar certa
admiração por Najati, o narrador por vezes deixa emergir de si uma veia
aristocrática, sobretudo quando julga o texto entregue pelo sírio, no qual é
preciso silenciar “o ruído das palavras”, vencer “os obstáculos de linguagem”
de um “inglês precário”. Findos os problemas estéticos, destaca-se a “extrema
franqueza e simplicidade” do texto, chegando mesmo a causar inveja em
Sebastián, que deseja usurpar aquela pureza que o atingiu
“incompreensivelmente”.
Ainda que sejam várias e
promissoras as subjetividades que habitam o Cambridge, ainda que suas histórias
apareçam na superfície do romance, o tom monocórdico e a posição rígida de quem
narra esvazia os elementos que se projetavam como fecundos. Como é um eixo
basilar do romance, é um pilar que termina por ser falho, uma relação de
interlocução que não se realiza.
Não é que Sebastián não reconheça
o risco de sua posição, mas sua incapacidade de traduzir o outro senão de seu
próprio lugar precário desde o início incomoda, soa como uma parasitose
possível de ser prevista, e que não chega a ser ameaçada, em que pese a espécie
de mea-culpa das páginas finais. Pelo contrário, o narrador se serve deste
outro, turva sua voz em tentativas artificiais de manipulá-la.
É possível argumentar que sua
condição de escritor pressuponha esse resultado. Talvez o escritor deva mesmo
viver neste impasse: em tentar ser instrumento, faz do outro veículo para seu
próprio registro, como se a literatura se impusesse como árbitra dessa relação
para que ela, e apenas ela, saia impune.
No entanto, está também a
literatura fundada em alicerces frágeis, porque nesse processo de tradução seu
caráter insuficiente de linguagem acaba revelado e suas colunas começam a
formar escombros. A recusa, entranhada nas personagens como resistência ao
mundo que as oprime, também impregna a narração, embora de outra forma: é
impossível construir Najati e Preta como o narrador parece ingenuamente
desejar, dada sua posição estática. Trata-se de uma ocupação natimorta, em que
o ruído desde sempre se evidencia, na voz do próprio narrador, intransponível.
Pacto
Acossado pela natureza de seu
empreendimento, Sebastián faz um exame de suas premissas e da escrita do livro
que chega ao fim, reconhecendo mais uma vez o fracasso inerente ao ato de
narrar: “Mais insondáveis ainda são os ocupantes deste livro”.
Se há certo didatismo e imposição
nesse movimento, nesse pacto da sinceridade como restituição de autoridade, é,
sim, o sentimento que valida a memória e suas lacunas, é esse recurso que pode
engajar, enfim, o leitor.
“Há experiências que preservam
seu lugar na memória, intocadas desde o primeiro instante, inacessíveis às
palavras e aos pensamentos, a qualquer abstração que tente reinventá-las.
Alguém dirá que essas lembranças mentem, que traem sua própria história, seus
sentidos ulteriores. Não. Mentem as palavras, os pensamentos, os sentidos,
mentem as abstrações: a alegria, excepcional e ilógica, permanece fiel a si
mesma.”
Quando se liberta da
palavra-monumento, da frase “citável”, chega ao tom possível da rememoração
fiel ao sentimento. Entende que não pode viver na estética, que a vida está
aqui mesmo, ela invade qualquer barreira com sua energia animal, qualquer
barreira que a linguagem possa erigir.
Nesse lugar o narrador se
movimenta sem restrição, faz da urgência da narrativa a forma possível ao que
tem a dizer: precisa dizer e dizer muito, antes que o pai morra, antes que o
hotel venha abaixo, antes que venham abaixo seu casamento e, no mesmo rastro, o
país.
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